quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Naninha da Treze


Naninha da Treze


Moradora de um ponto de ônibus na avenida 13 de Maio, Naninha incorpora muitas pessoas sob a figura frágil de uma só. O seu visual inusitado, com superposição de roupas e o inseparável turbante, inspirou a última coleção da marca Severino Brown, do estilista cearense Ayres Júnior

Eleuda de Carvalho
Da Redação

Magra, as pernas finas desfilam por sua passarela exclusivíssima, a avenida 13 de Maio para frente e para trás, desde a Jovita Feitosa até a Pontes Vieira. Sacola improvisada onde carrega tudo o que tem. A saber, poucas roupas e um caderno muito rabiscado, algaravia desconexa para quem não sabe ler o que há além das letras. A cabeça num turbante e o corpo enfiado em duas ou três blusas, um par de calças ruças e chinelos, tamancos, os pés nus. A boca desvalida nunca pára de falar. Ninguém escuta?

“... Fica a baleia ligada, fica longe, tudo bonito, tudo bem gordo, tudo gostoso, tudo cheiroso. Os bens invadidos. Eu passei 15 anos imobilizada e a mulher acabou com a minha vida. Foi isso”. A voz ganha nuanças, de acordo com a figura incorporada, mas no geral é um fio tímido, quase infantil e inaudível, em meio ao barulho dos carros que zunem 24 horas em sua casa. A casa mesmo é o terceiro ponto de ônibus que fica ao lado da Reitoria da UFC. Manhã, um varal improvisado no muro sustenta o guarda-roupa recém lavado. De outra vez, olha ela na coxia, escovando os dentes. E uma árvore do outro lado faz-se banheiro. Mesmo mijando em público, é o mais discreta possível.

“O pessoal me chama de Naninha”, diz, respondendo a primeira pergunta. As seguintes, delírio. De onde você vem, qual sua idade? “Deixa eu ver... Parece que nós viemos da Alemanha, é. Nós já coagida, eu e a moça. Mas não foi agora, não, foi em 55 mil cunha que esse caso ocorreu. Dentro dessa carne eu tenho dois meses, duas baginhas do tamanho daquele assim. A mulher quer que eu diga que tenho 45 anos, não tenho, tenho duas bagens e dois meses”.

Doida mansa, essa. Ou melhor, pássaro, uma mulher solta das gaiolas da mente. Naninha mesma se interroga e emenda respostas, os personagens de suas histórias todos misturados. Foi o que ela viveu, o que ela viu e ouviu, o que leu, quem saberá? Por onde Naninha andou, arrastando sua solidão povoada de sons. Hospício? Detida em casa, corrente nas canelas, como são tratados os loucos do sertão, por suas famílias precárias? “Você vai ver, lá em Caxias. Era as tochas de fogo comendo e o povo tudo correndo, tiraro eu por cima. A mulher foi queimada, tua tia foi queimada, lá em Caxias, ela disse. Comadre, tu salvou a menina?, pelo amor de Deus!”.

– E a menina foi salva?
“A menina, de sete anos, era eu. Elas colocam eu em carne de sete, 14, 15, de 16. De 19 anos, ficou uma mulher com rixa. Porque ela queria que eu casasse com o filho dela, não dá pra mim casar com 19 anos, eu disse. Não gosto de casamento não, que mulher careta. Ela quer que eu seja filha de Vilma, aquela gordona. Ela vem cobrindo eu nas características da filha dela, da filha de Vilma. Pra conversa encurtar, essa mulher não tem como provar que eu não seja aquele menino de 11 anos, pronto. Daquele menino de 11 anos pra lá, o rapaz viu, quando aquela gordona chega, ela faz isso até no colégio, fica dizendo, deixa eu ver... Enquanto passa a mão no cabelo da gente, ela sente a gente, ela é um ímã que engole sangue, ela sabe quem é você, não tou doida”.

O que é mesmo a locura? Impelido por um punhado de mentes perturbadas e brilhantes foi que o mundo deu suas reviravoltas e dá. Loucos de Deus, loucos de arte, os cordeiros malucos da paz, sim, eles transformam a face da Terra. A conversa de Naninha, este fluxo de aparência convulsa, deixa entrever outras loucuras, não dela. De outros. Dos normais. Naninha não se reconhece.
“Preciso sair da carne, meu corpo não é esse. Se eu fosse nascida nessa carne, se fosse, eu dizia. É 12 mocinha bem limpinha, sim, 12 anos, 12 tiros na linha de Santa Maria. Não adianta me intimidar pra eu ser irmã de vocês que eu não sou. Eu, na minha carne, posso não ter mãe, posso não ter irmã, mas eu não sou irmã de Graça não. Ela pegou eu, imobilizou. Três anos num canto, dois em outro, cinco em outro, quatro em outro”.

Uma frase, tal um mantra: “Quinze anos imobilizada”. É assim que ela define prováveis internamentos? E a idéia de desmembramentos, de perda do corpo, de seqüestro vem e vai nessa meia hora em que ela falava de olho no gravador, parando a conversa quando um ônibus não deixava eu ouvir mesmo nada, a não ser o som de ferragens ferindo o asfalto. “Eles passam, olham, nem ligam”.

Feitiço, encosto, bruxaria. Isso que disseram à Naninha, das vozes que ela escuta e deixa que digam, que pensem, que falem por sua voz? “Você vai ver, ela jogou uma demanda em mim, chega encolheu. Tereza, irmã dela, passou também as mesmas fases. Ela jogou um negócio engelhado na testa, uma magia que ela jogou em cima do passarim dos meninos, que eles foram, ah! Mas nós tinha vôo livre, em pé, em nave, em tudo. Porque minha vida não era assim. Por isto que digo, o sinal verde ou tem segredo ou o cão vai atentar esta menina”.

– Isso foi em Caxias?
“Não, noutro lugar. São 16 mil documentos, 60 mil planetas. Existe o direito de uma pessoa viver à busca de outras pessoas em 700 mil planetas, eu não vou mentir. Ela tira só o espírito, limpim. Ela pegou 28 mortes, de lá das 700 mil cidades pra cá. Vinte e oito mortes, pois é: sete para chegar no Inhamuns, só chegou com três anos, saiu com oito, e aos vinte ela tava abandonada, 21 mortes. E 18 seqüestros, em cada seqüestro uma desgraça. Quando ela puxa já é uma Nega, ela faz: eu vou lhe pegar”.

“Eu brincando com um foguim, nunca vi menino do buchão dentro do fogo. Eu liguei o fogo do fogão pra alimentar o cachorrim, e ela pegou, ui, ninguém comia não, dona, era lenha. O pedaço daquela carne já ia sendo roubado da baleia. O cachorrim branquim, né? Era. Pois é, ela já ia fazendo o lanche para o cachorrim. Quando a gente vai olhar, olhando o fogo, pois é, aquela menina ali também. Ela pegou característica, substância, a baleia ligada, a mulher pergunta por quê, por quê?, porque a mãe dela morreu, a velha que está dentro do sonho. Tá viva ou não tá? Tá, ela diz que está viva. Ela está viva? Tá. E quem morreu na letra que ela fez? Ui, ela disse, foi a mãe dela”.

“A mulher disse, a moça, a velha de lá, sei lá, se eu pudesse eu botava esse menina nessa capa, a bichinha tá tão sofrida. A mulher já estava abrindo essa capa aqui pra botar eu dentro. Já estava a cabeça, os braços e a bucetona, não vou mentir. Quer dizer, ela fez o transplante de três peças, que a irmã dela foi coagida. O caso ocorreu no Rio. Ela botou os braços há dez meses atrás, a cabeça e este xibiuzão. E abriu a capa aqui, na clavícula, e colocou eu dentro, dois pedaços, só há dois meses”.

Não chore por Naninha, nem mangue dela, não a imobilize outra vez. Quando você a vir, desfilando solta na avenida, inventando moda do pouco que a caridade lhe dá, magra e livre, com seus sonhos e pesadelos, veja: eis uma ave. E as aves só fazem sentido no céu. E a Treze de Maio é o céu de Naninha.

O Povo
Vida&Arte
29 de novembro de 2001


Um comentário:

  1. Belíssimo poema surrealista à la Guimarães Rosa, que seria maravilhoso escutá-lo com vozes, em um local bem apropriado. Teatro puro.
    Parabéns, querida amiga Escritora e Poetisa.

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